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Amor e Sacrifício

Davi Monticelli

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Lucas era uma rapaz como qualquer outro poderia ser, exceto em uma qualidade: tinha sorte. Não a sorte de ganhar a loteria, mas aquela que faz com que seja notado: conseguia ser bom em tudo que se aplicasse. Também tinha a sorte de acontecimentos parecerem se “encaixar” em seus planos.

A contramão de sua sorte, Lucas tinha uma história triste. Seus pais o abandonaram quando ainda era jovem, aos 18 anos. Foi logo depois de viajarem ao Egito para celebrarem que havia passado na Universidade Federal. Para Lucas, essa foi a melhor e pior viagem de sua vida. Isso porque a sequência dos fatos nunca fez sentido para ele. Um dia estavam todos sorrindo, conhecendo um povo de cultura muito diferente, no outro todos estavam quietos, isolados. Seus pais choravam o caminho inteiro da volta pra casa. Lucas tentou falar com eles, descobrir o que era, mas foi em vão. Ao chegarem em casa, o rapaz foi imediatamente sair com alguns amigos e contar sobre a viagem. Quando retornou, seus pais, e tudo de mais valioso que lhes pertenciam, haviam desaparecido. O único bilhete que deixaram dizia:

“Te amamos, a casa é sua. Viva bem e seja feliz, filho!”.

Agora Lucas tem 28 anos. Diria-se que até os 25 ele tentou encontrar seus pais. No início recebia cheques pelo correio para pagar as contas, e procurou rastrear de onde vinham, mas sem sucesso. Quando conseguiu seu primeiro emprego ainda aos 22, os cheques pararam de vir. Logo em seguida, Lucas foi rapidamente progredindo nos estudos e conseguiu trocar o primeiro emprego por uma bolsa de prestígio em iniciação científica. Tornou-se um exímio pesquisador em Física. Ganhou prêmios, saiu no jornal. Mestrado e Doutorado vieram na sequência. Ambos em países diferentes. E foi nessa passagem para o Doutorado que Lucas desistiu de encontrar seus pais. Resolveu deixar o passado no passado.

Uma vez no bar conversando com amigos, Lucas reconheceu quando lhe disseram que era sortudo, um sortudo-esforçado! Conquistou seus objetivos com muita dedicação, mas também recheado de momentos onde estava “no lugar certo e na hora certa” ou “não aconteceu conforme o planejado, mas foi para o melhor”. Perguntaram e ele se sempre havia sido assim, e, pela primeira vez o rapaz percebeu que essa sorte veio depois do abandono de seus pais.

Lucas voltou para casa com esse pensamento. Ignorou todo o cenário de Londres caminhando com a cabeça baixa, e pensamentos altos. Passou a noite sem dormir. As perguntas que fazia quando era jovem voltaram para lhe torturar. Pediu, assim, uma semana de folga e viajou ao Egito, onde tudo começou. Refez, com a melhor memória que pôde, os passos de sua viagem com seus pais. Procurou por uma explicação que fizesse sentido e não encontrou. Dia após dia ficava ainda mais confuso. Até que resolveu procurar um bar, onde um homem que lá estava o reconheceu pelos seus prêmios internacionais e pagou-lhe uma cerveja. Lucas agradeceu o gesto e ambos começaram a conversar. Quando o rapaz revelou o motivo de sua viagem ao estranho-novo-amigo, este mudou de expressão. Antes sorridente agora estava mais reflexivo, ainda um pouco a chorar. Lucas não comentou pois achava que o homem estava emocionado com seu passado triste. Depois de se despedirem, Lucas partiu para a Europa no dia seguinte e nunca mais voltou ao Egito.

O homem do bar, ainda em mesmo estado, foi para casa e buscou o colo da mulher. Chorava e chorava sem parar. Quando se recompôs sua esposa perguntou o que era, e ele esclareceu que a história havia se repetido. Assim, sua mulher também se pôs a chorar.

O que Lucas não sabia era que o homem não havia ficado emocionado com seu abandono, e sim o sacrifício de seus pais. Anos atrás, neste mesmo bar em uma noite qualquer, haviam se encontrado e conversado. O homem disse aos estrangeiros que tinha um amuleto antigo que queria se desfazer. O amuleto era de ouro puro, e o Deus marcado nele era conhecido por sua forma justa de “dar o mesmo que recebe em sacrifício”. Ele continuou dizendo ao casal que quando encontrou esse amuleto, recebeu uma visão: de que seu filho se tornaria uma pessoa importante, de sucesso, ao passo que ele e sua esposa seriam pobres e passariam sufoco. Agora ele queria se livrar do objeto pois não aguentava mais o aperto financeiro. Os estrangeiros acharam que tudo não passava de mais uma história local. Entretanto, quando a curiosidade venceu o ceticismo e tocaram o amuleto, ambos tiveram visões parecidas. Chocados com a experiência, saíram as pressas do local. O homem permaneceu. Colocou o amuleto sobre a mesa e girava-o como uma moeda noite a dentro. Horas depois, quando o bar estava mais vazio, o casal retornou. Os três conversaram. O homem chorou, o casal chorou. A mulher pendurou o amuleto no pescoço como um pingente. Despediram-se.

Hoje, em uma pequena casinha de barro e madeira na favela da Rocinha, encontra-se um casal de velhinhos, fazendo o frango do dia. Na sala, há vários recortes em jornal, de um rapaz pesquisador e seus prêmios, suas conquistas. E, no centro de tudo, um amuleto antigo, de ouro puro.

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Davi Monticelli

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